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sexta-feira, abril 30, 2004
  Um diálogo de sombras

O amor, na sua dimensão platónica, toca-me
o espírito. Analiso as suas implicações, o êxtase cortado
no instante da contemplação, o percurso místico
por entre emoção e reflexão. No entanto, será esse, de facto,
o verdadeiro conceito do amor? É que, ao ler
os clássicos, não encontro mais do que erros
no anacronismo das épocas. O que seria o sentimento
para um homem da Antiguidade? Por que lutaram
gregos e troianos se não estivesse estado em jogo o corpo
de uma mulher, mesmo que outros interesses, de acordo
com a teoria de Marx, os tivessem empurrado uns contra os outros? E
que faziam no meio de tudo isto os efebos socráticos,
os guerreiros espartanos com os seus amigos, e todas
as falas de homens e mulheres nas tragédias recitadas
em anfiteatros varridos pelos ventos do Mediterrâneo? Hipólito,
Antígona, Édipo, bacantes e sibilas, trocando imprecações
e argumentos... Eu, porém, sentado num muro que dá
para a falésia, enquanto a corrente empurra as gaivotas
para o largo, evoco os meus amores platónicos. Todas
essas que guardei na memória, para que habitassem poemas
e versos, juntam-se agora nesta tarde de calor, e perguntam-me
por que limitei o amor à inacção da alma. As suas imagens
vacilam com a tarde, como se o sol as abandonasse; e
dou-lhes o sorriso triste das figueiras mortas, para que o levem
para os seus túmulos de sombra. O amor, digo-lhes, não é
o abraço mental que nenhum remorso ressuscita; e
o silêncio deste dia de verão, em frente do mar, afasta-vos
de mim. No entanto, cada uma de vós, amei-vos: e
se vos esqueço é porque penso na teoria platónica, e a ponho
em causa, abandonando a caverna onde habitei
convosco. Aqui, ao sol, mesmo que seja este sol do fim
do dia, é outro o meu amor. Helena, Dido, Eurídice,
as mais feridas das mulheres amadas, e também outras,
Laura, Beatriz, Margarida, as que deixaram o seu nome
no coração do canto, tomam o vosso lugar - ó amigas
desencontradas - e é com elas que falo de Platão,
para ver se chegamos a alguma conclusão.

Nuno Júdice, Cartografia de Emoções, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001, págs. 30-31 
segunda-feira, abril 26, 2004
  Conto de fadas

Na varanda, a bela infanta apaga
o cigarro. O céu sem lua atira-lhe as
estrelas para cima, deixando-a suja
de uma cinza cósmica que ela
sacode para o vaso de flores, onde
o príncipe deixou um bilhete: "Hoje
não pode ser, meu amor"; e ela,
deitando a beata do quinto andar
para a rua, volta para a sala. "Estás
pronta?" Ela não responde. Senta-se,
apenas, ao colo do sapo, e beija-o,
esperando que se transforme em conde,
mandando o príncipe, mais o amor
dele, e o palácio, às urtigas.

Nuno Júdice, Cartografia de Emoções, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001, pág. 114. 
sábado, abril 17, 2004
  As raparigas amam muito

As raparigas amam muito. Riem
atrás das mãos uma manhã inteira
para esconder o vermelho dos
beijos que alguém lhes roubou e
um nome que vão deixar escapar
entre as primeiras palavras que
disserem. Vestem do avesso os
 
aventais de chita e fazem o leite
sobrar do fervedor e o caldo ser
mais salgado do que o mar. Mas
 
é bonito vê-las caminhar descalças
ao longo do corredor, como se
pedissem um par para dançar. As 
 
raparigas amam tanto. Sentam-se
em rodas de segredos uma tarde
inteira e esquecem no tanque os
colarinhos sujos das camisas, e os
cueiros, e uma barra de sabão a
derreter-se como o seu coração.
 
Mas é bonito vê-las beijar a boca
ao espelho no quarto das traseiras
e também a outra boca no retrato
que a seguir escondem amordaçado
na algibeira, não lhes cobice alguém
o que não tem. As raparigas amam
 
de mais. Deixam-se ficar sem dizer
nada uma noite inteira, bordando
no linho dos enxovais letras secretas
ao calor do fogão. E picam os dedos
 
distraídos nas agulhas que usaram
para descobrir o sexo de cada filho
que terão num jogo que jogaram
entre elas à tardinha. Mas é bonito
 
vê-las ao serão, quando o vento as
chama atrevido da cozinha e dão
um pulo seco na cadeira, e largam o
 
bordado e a lareira, e correm até à
porta a colher beijos que lhes deixam
risos nos lábios tão vermelhos como
as mais doces cerejas deste verão.
 
Maria do Rosário Pedreira, Nenhum nome depois, Lisboa: Gótica, 2004, págs. 50-51. 
sábado, abril 03, 2004
  Chegam cedo demais, quando ainda não podem escolher

Chegam cedo demais, quando ainda não podem escolher
nem decidir. Vêm carregados de espectros, de memórias
e de feridas que não souberam sarar; mas trazem a confiança
da cura nas palavras. Convencem-se de que amam outra vez
 
quando nos tocam os pequenos lugares, esquecendo-se do rumo
incerto dos seus passos nas estradas tortuosas que os
trouxeram. Abafam-se num cobertor de mentiras sem saber e
falam de injustiça quando tentamos chamá-los à verdade.
 
Dormem de vez em quando nas nossas camas e protegemo-los
da dor como aos filhos que não iremos ter nunca
porque não nos resignamos a perdê-los. E, um dia, partem, vão
 
culpados, não chegam a explicar o que os arrasta. Escrevem
cartas mais tarde — uma ou duas para se aliviarem dessa espada.
E nós ficamos, eternamente, sem vergonha, à espera que regressem.

Maria do Rosário Pedreira, A Casa e o Cheiro dos Livros, Lisboa: Gótica, 2002, pág.11. 
quinta-feira, abril 01, 2004
  É no cuidar que se mede o amar. 
Entre (ontem e hoje, a realidade e a ficção)

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