B my guest!
Um diálogo de sombras
O amor, na sua dimensão platónica, toca-me
o espírito. Analiso as suas implicações, o êxtase cortado
no instante da contemplação, o percurso místico
por entre emoção e reflexão. No entanto, será esse, de facto,
o verdadeiro conceito do amor? É que, ao ler
os clássicos, não encontro mais do que erros
no anacronismo das épocas. O que seria o sentimento
para um homem da Antiguidade? Por que lutaram
gregos e troianos se não estivesse estado em jogo o corpo
de uma mulher, mesmo que outros interesses, de acordo
com a teoria de Marx, os tivessem empurrado uns contra os outros? E
que faziam no meio de tudo isto os efebos socráticos,
os guerreiros espartanos com os seus amigos, e todas
as falas de homens e mulheres nas tragédias recitadas
em anfiteatros varridos pelos ventos do Mediterrâneo? Hipólito,
Antígona, Édipo, bacantes e sibilas, trocando imprecações
e argumentos... Eu, porém, sentado num muro que dá
para a falésia, enquanto a corrente empurra as gaivotas
para o largo, evoco os meus amores platónicos. Todas
essas que guardei na memória, para que habitassem poemas
e versos, juntam-se agora nesta tarde de calor, e perguntam-me
por que limitei o amor à inacção da alma. As suas imagens
vacilam com a tarde, como se o sol as abandonasse; e
dou-lhes o sorriso triste das figueiras mortas, para que o levem
para os seus túmulos de sombra. O amor, digo-lhes, não é
o abraço mental que nenhum remorso ressuscita; e
o silêncio deste dia de verão, em frente do mar, afasta-vos
de mim. No entanto, cada uma de vós, amei-vos: e
se vos esqueço é porque penso na teoria platónica, e a ponho
em causa, abandonando a caverna onde habitei
convosco. Aqui, ao sol, mesmo que seja este sol do fim
do dia, é outro o meu amor. Helena, Dido, Eurídice,
as mais feridas das mulheres amadas, e também outras,
Laura, Beatriz, Margarida, as que deixaram o seu nome
no coração do canto, tomam o vosso lugar - ó amigas
desencontradas - e é com elas que falo de Platão,
para ver se chegamos a alguma conclusão.
Nuno Júdice,
Cartografia de Emoções, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001, págs. 30-31
Conto de fadas
Na varanda, a bela infanta apaga
o cigarro. O céu sem lua atira-lhe as
estrelas para cima, deixando-a suja
de uma cinza cósmica que ela
sacode para o vaso de flores, onde
o príncipe deixou um bilhete: "Hoje
não pode ser, meu amor"; e ela,
deitando a beata do quinto andar
para a rua, volta para a sala. "Estás
pronta?" Ela não responde. Senta-se,
apenas, ao colo do sapo, e beija-o,
esperando que se transforme em conde,
mandando o príncipe, mais o amor
dele, e o palácio, às urtigas.
Nuno Júdice,
Cartografia de Emoções, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001, pág. 114.
As raparigas amam muito
As raparigas amam muito. Riem
atrás das mãos uma manhã inteira
para esconder o vermelho dos
beijos que alguém lhes roubou e
um nome que vão deixar escapar
entre as primeiras palavras que
disserem. Vestem do avesso os
aventais de chita e fazem o leite
sobrar do fervedor e o caldo ser
mais salgado do que o mar. Mas
é bonito vê-las caminhar descalças
ao longo do corredor, como se
pedissem um par para dançar. As
raparigas amam tanto. Sentam-se
em rodas de segredos uma tarde
inteira e esquecem no tanque os
colarinhos sujos das camisas, e os
cueiros, e uma barra de sabão a
derreter-se como o seu coração.
Mas é bonito vê-las beijar a boca
ao espelho no quarto das traseiras
e também a outra boca no retrato
que a seguir escondem amordaçado
na algibeira, não lhes cobice alguém
o que não tem. As raparigas amam
de mais. Deixam-se ficar sem dizer
nada uma noite inteira, bordando
no linho dos enxovais letras secretas
ao calor do fogão. E picam os dedos
distraídos nas agulhas que usaram
para descobrir o sexo de cada filho
que terão num jogo que jogaram
entre elas à tardinha. Mas é bonito
vê-las ao serão, quando o vento as
chama atrevido da cozinha e dão
um pulo seco na cadeira, e largam o
bordado e a lareira, e correm até à
porta a colher beijos que lhes deixam
risos nos lábios tão vermelhos como
as mais doces cerejas deste verão.
Maria do Rosário Pedreira,
Nenhum nome depois, Lisboa: Gótica, 2004, págs. 50-51.
Chegam cedo demais, quando ainda não podem escolher
Chegam cedo demais, quando ainda não podem escolher
nem decidir. Vêm carregados de espectros, de memórias
e de feridas que não souberam sarar; mas trazem a confiança
da cura nas palavras. Convencem-se de que amam outra vez
quando nos tocam os pequenos lugares, esquecendo-se do rumo
incerto dos seus passos nas estradas tortuosas que os
trouxeram. Abafam-se num cobertor de mentiras sem saber e
falam de injustiça quando tentamos chamá-los à verdade.
Dormem de vez em quando nas nossas camas e protegemo-los
da dor como aos filhos que não iremos ter nunca
porque não nos resignamos a perdê-los. E, um dia, partem, vão
culpados, não chegam a explicar o que os arrasta. Escrevem
cartas mais tarde — uma ou duas para se aliviarem dessa espada.
E nós ficamos, eternamente, sem vergonha, à espera que regressem.
Maria do Rosário Pedreira,
A Casa e o Cheiro dos Livros, Lisboa: Gótica, 2002, pág.11.
É no cuidar que se mede o amar.